Seja bem-vindo, seja bem-vinda. Se gostar do que leu, pode copiar, imprimir, divulgar, desde que cite a autoria do texto ou do poema, respeitando assim o direito autoral. Se me avisar, melhor ainda, fico sabendo por onde andam minhas garrafas lançadas ao mar. Bom passeio.
Poesia na praia, na rede na varanda, no verão também, por que não? (à venda na Via Livros 21370300 e Imperatriz do Tacaruna e com a autora inter.g@terra.com.br)
A edição está ótima, vale conferir da primeira à última página.
Meu conto na edição:
Na ponta dos dedos
Gerusa Leal
Cabeça erguida, nariz
empinado, não tem satisfações a dar aos cachaceiros no bar da esquina. Nem às
vizinhas espiando pelas brechas das janelas que escuta fechar quando deseja boa
noite dizendo-lhes o nome.
Atravessou o pontilhão
sobre o riacho quase seco que corta a mata rala por trás do barraco. De taipa,
dois aposentos; parecia que desabava se batessem a porta com mais força.
Escuro. Levantou o capacho, a chave estava lá. Entrou tateando as paredes.
Achou o candeeiro, ainda um pouco de querosene; o fósforo no lugar de sempre.
Precisava de um banho. O
banheiro, nos fundos do barraco, um cubículo improvisado com tábuas catadas em
restos de construção. O chuveiro, um latão de tinta que encheu com água tirada
do poço com o balde. Puxando um barbante, virava despejando em outra lata cheia
de furos no fundo abertos com prego e martelo, improviso do irmão enquanto
ainda morava lá. Sentiu a água fria escorrendo sobre as roupas suadas e fedidas como se fosse um bálsamo.
Foi tirando peça por peça
com a ponta dos dedos. Pegou o pedaço de sabão amarelo numa das brechas das
tábuas, esfregou, agachou-se, enxaguou na água da bacia. Torceu, pendurou tudo
na corda.
A noite era de lua. O
barraco era o último da rua antes do rio, ficava isolado por um terreno baldio
cheio de bananeiras. Os galhos secos dos arbustos perto do riacho não se
moviam, a estiagem deixava o tempo abafado.
Puxou o barbante deixando
a água escorrer sobre o corpo nu. Esfregava com
força até a pele arder. Voltou para dentro do
barraco se enxugando com a toalha. Largou o corpo no cobertor puído sobre o sofá deonde pulava
uma mola. O silêncio só não era maior porque depois que se aquietara o grilo
voltou a cantar.
Quando partiu, não pensou
que um dia voltasse. Muito menos assim. Nem
que sentisse falta do que deixou para trás.
Estremeceu lembrando o
suíço que lhe confiscou o passaporte e deixou trancada junto com as outras,
quase sem comida. Ele sorria enquanto lhe sussurrava ao ouvido sei que gosta
disso mas precisa aprender a fazer bem feito eu estou aqui para ensinar.
A proposta de trabalho
era irrecusável. Arabela teria por volta de quinze, dezesseis anos, se tanto. O
registro de nascimento dizia que eram dezoito. Ia acontecer no exterior, ser
dançarina, quem sabe com um pouco de sorte até modelo. Desde criança treinava
caras e bocas na frente do espelho manchado e opaco na porta do guarda-roupa da
mãe. Que havia falecido enquanto ela estava fora. Tinha dado a maior força para
que aceitasse. Afinal que futuro ela ia ter ali, naquele fim de mundo, no meio
de ignorantes que não percebiam o talento da moça. Por despeito ou cobiça a
comiam com os olhos.
Foi a amiga que a indicou.
Não comentou detalhes. Pediu uma foto, que seguiu pelo correio. O suíço chegou
no carrão, quando estacionou na porta o lugar inteiro já sabia, o motorista
tinha parado para perguntar onde ela morava. Cercou-a de promessas, e ela foi.
Era obrigada a prestar
serviços por dezesseis a dezoito horas por dia. Acabou, como as outras, nas
drogas.
De repente uma paz, um
alívio ali sozinha. Um instante de culpa por não estar sentindo a falta da mãe.
Entrou no quarto, abriu a
porta do guarda-roupa presa apenas por uma dobradiça,
aprumoue se olhou no espelho. Bonita.
Não, ela tinha entendido
mal, não era bem isso, se estava ali era porque imaginava que Arabela tivesse
muita experiência e que poderia lhe ensinar a fazer coisas que tirassem o
marido do caso que estava tendo com uma colega do escritório, mas havia pensado
só numa conversa.
E o outro que depois de
fazer de tudo com ela veio contar que acabou o noivado de seis meses porque a
noiva tinha pedido para que ele a chamasse de putinha, lhe desse uns tapas,
pegasse forte, crente que ele ia se amarrar. Mas ele ficou chocado com a
iniciativa e gritou que não admitia que a mãe dos filhos dele parecesse uma
puta. Cafajestes.
Uma puta. Respirou fundo,
cansada. Queria ser prostituta. Puta, não. Esse não é um desejo que se admita
nem para si mesma, mas já não tinha porque esconder dela própria. Queria ser
prostituta. Livre. Ser dançarina, modelo. Ganhar o próprio sustento e não
precisar vender o corpo feito as putas. Só queria se entregar sem regras, sem
condições, simplesmente se oferecer.
Acariciou os seios,
deslizou as mãos sobre o ventre, alisou as coxas. Passou a ponta dos dedos de
leve sobre os pelos entre as pernas.
Só queria ser dona do
próprio nariz. Que vantagem havia em ser prostituta se para isso acabava
virando escrava? Puta.
No início não havia maldade,
só prazer. Do olhar, do sorriso, do toque. A mãe era quem a despertava para a
malícia, quando lhe mandava para dentro de casa se jogava bola de gude agachada
com mais três ou quatro meninos, quando lhe dizia para sentar direito, puxar a
saia, não sorrir tanto.
Também não era bem assim
essa história de que puta não goza. Ela às vezes gozava, às vezes não. Mas o
grande prazer era o de não ser mulher de um homem só.
E eles queriam que ela
falasse disso quando a interrogaram depois que a polícia desmantelou o
cativeiro. Eles jamais entenderiam.
Vestiu a calcinha e a
camiseta. Estava com fome. Achou uma bermuda, calçou a sandália e retornou ao
centro. No bar, pediu um café com leite, pão com manteiga. O cara na última
mesa levantou e se aproximou do balcão. Ela sorriu. Subiram para um dos
cômodos.
Quando desceu, pediu uma
cachaça. Bebeu de uma vez, sem olhar ao redor retomou o caminho de casa.
Àquela hora as ruas
estavam vazias. Aprumava o corpo. Mantinha a pose.
Às vezes acordava sem
saber onde estava. Adormecia e as imagens se misturavam ela dançando no palco
desfilando na daspu jogando bola de gude o sorriso cínico do suíço o prazer a
dor os homens se sucedendo na cama a mãe morta o delegado o banho no quintal o
cheiro na ponta dos dedos o cara no bar a caminhada solitária pelas ruas
desertas aquilo não era hora de moça direita andar fora de casa.
Texto da fala de Gerusa Leal na mesa em homenagem a Raimundo Carrero, em Arcoverde, na quarta edição da Jornada Literária Portal do Sertão, promovida pelo SESC Pernambuco
A importância do sertão na obra de
Raimundo Carrero
Gerusa Leal
"Como escritor, não
posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre
orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir:
não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a
língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da
eternidade, da solidão (...). No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou
um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua".
Guimarães Rosa
Entrevista
conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em
janeiro de 1965 e publicada em seu livro: Diálogo com a América Latina.
São Paulo: E.P.U. 1973
A partir dessa fala de Guimarães Rosa, acho que posso, sem
receio, afirmar que no sertão, do ponto de vista metafísico, psicológico, fala-se
a língua de Raimundo Carrero. E Raimundo Carrero fala a língua do sertão. Mesmo
se sertanejo não fosse. Pois a obra de Carrero, também, além de não seguir a
receita de Hollywood, se escreve no terreno da eternidade, da solidão. Nos
romances de Carrero, os personagens também são o eu que ainda não encontrou um
tu. Na estética de Carrero, também os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua.
Mesmo, dizia eu, que sertanejo não fosse. E sendo, ainda
mais força tem o sertão, de todos os pontos de vista, na obra de Carrero. Ainda
quando a paisagem e o tema não são sertanejos, os personagens, em sua
psicologia, embora urbanos, trazem dentro de si alguma espécie de sertão. E não
podia ser diferente já que sertanejas são as raízes do escritor.
No romance de estreia de Carrero, e na protagonista
escolhida, Bernarda Soledade, a tigre do sertão, a partir do título o sertão se
encontra presente. Mas o que chama a atenção, já nesse livro, é a força, a
densidade, a vastidão dos sertões interiores. É a psicologia da protagonista,
uma mulher seca na exteriorização dos seus atos, como secas parecem as fortes
mulheres do sertão, seca nos gestos, nas palavras, como era da cultura sertaneja
no tempo em que o romance é ambientado, como seco parece o sertão quando não
chove:
“- Naquelas matas, vamos caçar muitos cavalos. Em Puchinãnã,
falta um homem de músculos fortes. Poderia sair do meu ventre. Entretanto, não
passo de uma mulher seca. Nenhum homem quis pousar sobre o meu corpo alvo. E os
cavalos serão a presença do macho.”
Carrero,
mesmo sendo sertanejo, costuma dizer que não conhece seca, pois em
Salgueiro chove muito. Além disso, fica difícil falar na importância do sertão,
região geográfica ou socioeconômica, pois teríamos que definir se falávamos do
sertão mítico, que persiste no imaginário principalmente de quem não é da
região, ou do sertão contemporâneo, que apesar de preservar cultura própria, já
assimilou tanto da cultura dos grandes centros urbanos. Os dois convivem, como
já disse Antônio Torres, sem se negar.
Os personagens de
Carrero não têm nada dos personagens tipo da literatura
regionalista. Então, não dá pra falar da importância do sertão na obra de
Raimundo Carrero sem reinventar o significado da palavra.
Ariano Suassuna teria
dito que o sertanejo é um povo de sobrevivência. Euclides da Cunha, que é antes
de tudo um forte. Os personagens de Carrero todos lidam com a questão da
sobrevivência e todos são, a seu modo, fortes, mesmo quando precisam tirar essa
força de uma incomensurável fragilidade. Assim como todo ser humano. É desse
substrato sertanejo que nascem também as personagens de Sombra Severa, vivendo
paixões primitivas, com uma secura temperada de afetos que nunca se dizem de
todo.
Se há um sertão de
Guimarães Rosa, um sertão de Euclides da Cunha, um sertão de Ariano Suassuna, em
As sementes do Sol – O semeador, o leitor é apresentado ao sertão de Raimundo
Carrero, um sertão que, segundo o próprio escritor, foi criado como a região
geográfica Arcassanta, que pode ser uma fazenda, um povoado, uma cidade, ou
apenas um simples lugar deslocado do mapa, à beira da estrada, de um rio, de um
açude. Érico Veríssimo inventou Antares. Outros autores preferem nomear os lugares
pelo nome que receberam na tradição. Carrero diz preferir ter mais liberdade.
Sua região, seu sertão começou com Santo Antônio do Salgueiro, ou simplesmente
Salgueiro, e evoluiu para Arcassanta, porque, afirma o escritor, não sou
retratista, sou intérprete. Esse sertão, que Raimundo Carrero carrega para onde
for, aparece em algumas passagens de As sementes do Sol:
“Terminada a reza, pesou sobre a sala um silêncio morto. O
silêncio da noite de Arcassanta. Um silêncio morto e suave. Um silêncio que beirava
a agonia. E sem qualquer ruído, enquanto as empregadas solícitas e caladas
providenciavam as outras comidas, os homens levantaram as cadeiras para se
sentar.” (...)
“Avistaram a casa-grande de Arcassanta. A casa – avarandada,
alta, pintada de branco, portas e janelas azuis – apareceu no meio da neblina.”
(...)
“Parecia que retornava a Arcassanta, os chinelos
empoeirados, para conviver com fantasmas, almas penadas. Para escutar o bater
de portas e janelas abandonadas, sacudidas pelo vento.” (...)
“Eram seis horas. Sabia porque de Arcassanta podia escutar
as batidas do sino da capela de Santo Antonio do Salgueiro. Batidas monótonas,
tristes, compassadas. Mais monótonas e mais tristes quando ouvidas à distância.
Na lonjura das idéias.” (...)
“O cavalo fazia voltas, voltas, mas estava mesmo era
retornando para Arcassanta. Involuntariamente. Sem que ele, o cavalo, nem ele,
Absalão, tivessem forças para evitar.”
Carrero não evita. Em O
amor não tem bons sentimentos, romance cujo cenário e temática são bem mais
urbanos, retorna a Arcassanta:
“Agora me lembro do corpo de Biba nas águas barrentas do rio
em Arcassanta, e tenho certeza de que na verdade estava de cócoras, por causa
do hábito. Apenas de calça, sem camisa, repousava os braços nos joelhos, os pés
na lama. Não foi assim desde o começo, confesso que não foi assim. Disse aos
policiais tantas vezes, apesar das pancadas.”
Arcassanta, o sertão de Raimundo Carrero,
aparece em outros romances, mesmo sem esse nome, de outras maneiras. Em Sombra
Severa, por uma narrativa de forma seca, com frases curtas e incisivas,
economia verbal que caracteriza o lacônico Judas. O sertão como região está
presente no romance, mas mais como paisagem para um enredo que se passa muito
mais dentro do que fora dos personagens. É do sertão de dentro que vêm também
as impressões, os pensamentos, as solidões de Judas:
“Judas pensou em tudo isso depois que trouxe o tamborete,
sentou-se encostado na parede da casa, o alpendre recendendo a matos verdes, e
acendeu o cigarro, cuja fumaça – antecipada pelo vaga-lume do fósforo –
ensombreou o rosto ossudo e taciturno já escurecido pelas abas do chapéu,
ombros arriados, um olhar sofrido – o touro que o habitava -, gestos monótonos
de quem sabe que a noite não recua.”
Carrero já disse, em outro
momento, que foi no Sertão, vendo os homens nas feiras, vendo os vaqueiros, que
sua vida começou a ter sentido. Não só os homens fortes e trabalhadores, os
vaqueiros, mas também os bêbados, os loucos, os fracassados. Não só os homens,
mas também as mulheres. Não só as mulheres secas e de uma virtude severa,
austera, mas também as prostitutas.
Foi nesses homens e
mulheres observados desde a infância, primeiro no sertão, que também a vida de
seus personagens ganhou sentido. Já em As sementes do Sol – O Semeador, Carrero
reflete sobre questões que ganham características únicas sob o Sol de um sertão
que transmite a seus personagens a cultura e os valores de uma região, embora
sejam questões universais, como por exemplo as da religião, da morte:
“As
vizinhas rezavam em torno do caixão. Davino e os filhos sentaram-se na mesa
para o almoço. Apesar da morte da esposa, não permitiu que alterassem os
hábitos da casa. Mesmo quando recebia os pêsames, ordenou que as empregadas
preparassem um cozido gordo. Não admitiu sequer que Mariana, tão frágil quanto
um vulto, permanecesse ao lado do caixão. Desejava todos na mesa, todos. (...)
Davino fez o Nome-do-Pai. Todos o acompanharam. Segurando
uma velha Bíblia de capa negra, rezou o salmo. Terminada a oração, os talheres
tiniam. Mariana, mais ausência do que vida, colocou umas poucas colheradas no
prato. As lágrimas escorriam pela face. Lutava para servir-se. Escutavam-se,
vindos da sala de visitas, os cânticos fúnebres.
Lourenço tocou com o cotovelo em Absalão:
- Ainda não foi visitar o rio onde sua mãe suicidou-se?
Davino levantou a voz.
- Não quero que fale deste assunto agora. Aliás, você
conhece suficientemente os costumes desta casa, Lourenço. Sabe que não é
permitido falar na mesa. É no silêncio da mesa que se agradece a Deus pela
abastança.”
Questões como a
embriaguês habitual do personagem são também tratadas, em As sementes do Sol, à
luz dos costumes, valores e cultura sertaneja:
“A mesa, Absalão sabia, não era ali como um templo. Era uma
arena. Uma luta. Lourenço sempre falava, embriagado ou não. Embora fosse raro
não estar embriagado. Ester o repreendia, poupando o nervosismo e o refinamento
do marido. Muitas vezes reuniu os filhos antes das refeições para pedir que não
rissem com as brincadeiras do tio.”
O cenário da figura do
patriarca à cabeceira da mesa, do respeito que lhe devia toda a família, dos
cuidados da mulher para que esse respeito não fosse afrontado pela ingenuidade
das crianças ou pelo destempero do parente embriagado, ganha contornos típicos
pela influência da formação sertaneja do escritor, o que fica bem evidente nas
cenas e diálogos lidos. Típicos nesse aspecto, pois as questões, é preciso
reafirmar, são universais. Como bem lembra Tolstoi na abertura de Anna Karenina,
no sertão pernambucano ou na Rússia, as famílias infelizes são infelizes cada
uma a sua maneira. E é dessa infelicidade, dessas agruras, dessas angústias,
desse eu que ainda não encontrou um tu, seja no sertão, seja nos espaços
urbanos, que a obra de Carrero fala, através da vida de seus personagens.
Pincei algumas poucas
obras, alguns poucos personagens que, a meu ver, exteriorizam mais a
importância do sertão na obra de Carrero. Mas em todos os seus personagens o
leitor vai encontrar, de alguma forma, essa força, esses valores, essa cultura
sertaneja, mesmo que os personagens, repito, sejam urbanos. Foi a forma que
encontrei para não fugir ao tema proposto pela mesa, para não seguir por um
viés reducionista, por uma análise sociológico-geográfica.
A obra de Carrero é
vasta, seus personagens são complexos, a raiz sertaneja é um dos múltiplos
aspectos que nutrem suas narrativas – sua Arcassanta, que ele carrega para onde
for. Importante, sim, mas mesmo quando explicitado, na obra de Raimundo Carrero
o sertão aparece como elemento de composição, cenário
para a reflexão sobre temas e questões humanas de ocorrência e importância
universal. Ou, como diria Autran Dourado, perda recente para a literatura
brasileira, grande escritor e teórico da prosa de ficção:
“Os críticos-sociólogos recebem os personagens como gente,
ainda estão na mimesis, quando os criadores muito pouco se preocupam com isso,
a não ser secundariamente, para passar a sua moeda falsa e iludir – da mesma
maneira que com a metáfora – o leitor: o bom do personagem é ter um corpo...”
Os personagens de
Carrero têm corpo mas, acima de tudo, têm alma. E é muito mais nessa alma que
circula, metaforicamente, o sangue sertanejo do autor.
Alvarenga - a construção do personagem
na obra de Raimundo Carrero
Gerusa
Leal
Uma corrente mais técnica dos estudiosos da ficção
considera que a literatura é jogo de palavras, de movimentos interiores, de
metáforas, de símbolos, o personagem seria apenas um desses elementos. Para
outra corrente, o problema central da ficção é o personagem.Não existe história sem personagem. Mas o
romance é também uma experiência de linguagem escrita, se realiza no texto.
Com esses pressupostos em vista, a idéia seria
refletir sobre a construção do personagem, pensar em como ele nasce e se
desenvolve. Tomamos Alvarenga, nascido em Maçã Agreste e protagonista de Seria
uma Sombria Noite secreta para ilustrar esse aspecto na obra de Raimundo
Carrero. Sem pretensões de defender teses, de escrever artigos, ensaios, apenas
partilhando impressões sobre a criação do personagem escolhido, que o texto de
Carrero provoca em mim.
Sobre Alvarenga, em sua gênese, já no texto impresso e
publicado, penso num rosto na sombra, que é como Carrero diz que um personagem
nasce. Nasce sem nome, porque o autor ainda está procurando a voz narrativa.
Para que tenha uma voz, necessita de uma identidade. E o nome, que pode até não
vir, que pode mudar ao longo do processo criativo, comporia, assim, uma
identidade psicológica.
A primeira vez que entrei em contato com Alvarenga foi
na leitura de Maçã Agreste, romance publicado em 1989. Lá, ocorreu-me que das
sombras de Quincas Borba pode ter começado a se esboçar o rosto do personagem.
O romance de Machado de Assis conta a história de Rubião, ingênuo rapaz que se
torna discípulo e herdeiro do filósofo Quincas Borba, personagem do romance
anterior, Memórias Póstumas de Brás Cubas e que, sendo enganado por seu amigo
capitalista Cristiano e sua esposa Sofia, paixão de Rubião, vive na pele todo o
fundamento teórico do Humanitismo, filosofia fictícia daquele filósofo.
Mas o que teria Alvarenga a ver com essa história
toda? Em Maçã Agreste, a personagem Sofia - assim como Sofia é a esposa de
Cristiano no romance de Machado -, lá na página 52, “Dirigiu-se ao atendente e pediu o romance Quincas Borba, de Machado de
Assis.”
(...)
“Agora estava disposta a lê-lo. Refeita,
sentia que não teria medo das palavras.
‘Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã.
Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma
grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água
quieta; mas, em verdade, vos digo que pensava em outra cousa. Cotejava o
passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora?
Capitalista’.”(pág. 53 de Maçã
Agreste).
Com a referência, pareceu-me, Carrero prepara o
surgimento do personagem que, na página seguinte (54), começa a chegar como uma
espécie de pressentimento da presença nascente, do ponto de vista da personagem
Sofia: “Foi quando Sofia observou que,
junto à porta, estava um homem”.
Assim, nesse momento um mero coadjuvante, um rosto nas
sombras, um homem. Apenas um homem. Que vai aos poucos ganhando contornos: “Não exatamente um homem, desses que parecem
afoitos e que nunca atravessam a meia-idade, acompanhantes ousados de
prostitutas, mas um velho.” Alvarenga começa a ser criado, de maneira
indireta, através do olhar de Sofia. Aqui já uma leve alusão, ainda velada, à
relação entre Alvarenga e Raquel: “acompanhantes
ousados de prostitutas” que só no desenvolvimento da narrativa vai sendo
desvendada.
O personagem, agora, não é mais apenas um homem, é o
acompanhante de uma prostituta e, a essa altura de sua construção enquanto
personagem, um velho: “Rigorosamente, um
velho. Vestido num terno azul, sem gravata, um bigode ralo embranquecido,
cabelos negros pintados, e bem penteados, gordo.”
Alvarenga vai se delineando. Aos poucos vai começando
a sair das sombras: “As rugas, apesar de
tudo podia ver as rugas, não escondiam a velhice.” É o olhar de Sofia
construindo, com delicadeza, a personagem, dando algumas leves pinceladas de um
perfil físico que já deixam transparecer um pouco do perfil psicológico do
homem.
Na página 55, Sofia “Lembrou-se do romance de Machado de Assis, e era como se todos ali
tivessem os olhos e os sentimentos de Rubião tentando decifrá-la”.
As reflexões de Sofia sobre Rubião ficam em suspenso
enquanto testemunha o depoimento denso e a reação de Jeremias à revelação de Raquel
de que resolveu ser prostituta. Até agora o personagem veio sendo revelado,
apresentado, por características físicas, um perfil estático, quase um retrato,
pintado por Sofia. É a idade, são as roupas, os traços fisionômicos.
Lá para a página 57, Sofia volta-se outra vez ao velho
e, sob seu olhar, o personagem começa a se movimentar, a ganhar vida: “O rapaz [Jeremias, irmão de Raquel,
amigo de Sofia] passou a mão nos olhos,
enxugando o suor que caía da testa. Repetiu o gesto, e o sorriso não se afastava
dos lábios. O que, aliás, contrastava com a face do velho que olhava um e
outro, um tanto atônito, às vezes também querendo sorrir, mascarado pela
inquietação. Sentado, as mãos sobre as coxas, baixava sempre a cabeça para
beber um gole de cerveja.”
Apenas um olhar, uma intenção de sorriso, uma
inquietação, um gesto característico, mas já se movimenta. As ações são
narradas representando comportamentos. Não são elementos isolados. O perfil
psicológico vai sendo desenhado.
Mais adiante, à página 59, diante da revelação de
Raquel: - “Quero ser prostituta” -, a
narrativa volta mais uma vez o olhar ao velho: “Quatro árvores estariam mais consoladas pelo vento. De todos, porém,
quem revelava absoluto abatimento era o velho. Enterrava a cabeça no peito, as
mãos cruzadas entre as pernas abertas, e permanecia imóvel, uma imobilidade
insólita, que significava, ao mesmo tempo, presença e distância, um objeto, ou
a aproximação mais verdadeira da dor e da compreensão, um ser vivo.”
O narrador – nesse momento, Sofia – coloca o leitor
agora mais em contato também com os sentimentos de Alvarenga, expressos nos
gestos. Um ser vivo. As palavras começam a se mover, o texto começa a traçar,
embora ainda de maneira possivelmente confusa para o leitor, a gênese do
personagem que, aqui, já pulsa. Já sofre. Já é. Já existe.
“Não se ouviam
ruídos nem a música dos cabarés. Mas o velho, saindo do torpor em que se
encontrava, num gesto que lembrou o som desafinado e grotesco de um instrumento
no meio de uma orquestra, meteu a mão no prato e retirou um grande pedaço de
queijo, enchendo a boca desajeitada e gulosamente. Mastigava com apetite e
força, deformando a boca. Não esperou sequer que a comida descesse pela
garganta, Tomou o copo de cerveja e bebeu.”
É o próprio personagem, embora ainda sob o olhar de
Sofia, lançado agora ao centro da cena, do palco, quem vai, no foco da luz, em
câmera fechada, em close, dando ordem ao disforme, ao caótico que caracteriza a
gênese de Alvarenga. Vai “saindo do torpor”. Humanizando-se, até come; e seus
gestos o vão construindo.
As frases vão se apresentando, depois os movimentos
iniciais levam ao nome.
“- Rubião tem
fome.
A gargalhada,
imensa gargalhada de Jeremias, espantou. Ele ouvia a frase de Sofia, seguida de
um arroto do velho. Sem entender a alusão ao livro de Machado, Raquel olhou
estranhamente para os dois. Mas, enquanto o velho enchia, outra vez, o copo de
cerveja, deixou o pequeno sorriso encantar os lábios. De certa forma, gostara
da expressão.
- Rubião sabe
fazer coisas.
Disse e
aproximou-se do companheiro. Sofia olhou de viés para Jeremias, lembrando-se de
Rubião, Cristiano Palha, Freitas e Carlos Maria e, sobretudo, da outra Sofia [a de Quincas Borba]. Que haveria ela de pensar num instante daquele? E o velho continuava,
vorazmente, a devorar o queijo e a beber a cerveja.
- Vamos,
Rubião, mostre a eles o que sabe fazer.
Ele levantou
o rosto gordo, com o bigode sujo de espumas, imitando um sorriso, limpando os
lábios com a língua:
- Você fala
comigo?
Raquel
colocou a mão no seu ombro:
- Com quem
haveria de ser?
- Meu nome é
Alvarenga. Por que me chamam assim?”
Aqui fica a pergunta, lançada ao ar, para os demais
personagens - e para o leitor. Nesse trecho, também, a relação do personagem
com Raquel vai se modificando ao olhar do leitor. Não mais apenas um
acompanhante ousado de prostitutas. Mas um companheiro de Raquel.
O narrador oculto, organizador vai, por meio do
diálogo, fazendo um uso sofisticado das marcações para ir acrescentando traços
ao perfil físico do personagem - dando-lhe um bigode, por exemplo -,
construindo sua identidade. É o próprio personagem quem afirma seu nome,
começando, assim, a destacar-se das sombras do Rubião, de Quincas Borba, e se
apresentando como um outro, que os demais personagens ainda estão começando a
conhecer – assim como o leitor.
É Raquel quem, à página 60, joga Alvarenga outra vez,
dessa vez quase literalmente, no palco, e lhe pede que se apresente, que se
defina, saia da ambiguidade que os dois nomes criam:
“- Alvarenga
ou Rubião, mostre a eles suas habilidades. O velho também riu, riu e repetiu a
palavra nova duas ou três vezes, apenas para ele. Contou que vivia, sozinho,
com um cachorro no quarto de pensão. Isto é, precisava escondê-lo porque a
hospedeira não gostava de animais nos aposentos. Sobretudo um cachorro, que
colocava em risco a saúde dos outros hóspedes. O bicho era bem-comportado, não
latia, não grunhia, obedecendo a todas as ordens do dono.”
Sofia e Jeremias contribuem também com seu olhar para
ir plasmando Alvarenga para o leitor, de maneira indireta, o narrador colado ao
ponto de vista dos personagens:
“Enquanto ele
falava, Raquel serviu mais uma cerveja e mais queijo, mesmo sabendo que estava
perdendo sua própria alimentação. Sofia e Jeremias esqueceram o enfado,
interessados na figura ali à frente, conversando e conversando, ganhando
animação, mesmo que os gestos fossem deselegantes.”
As características do personagem vão sendo melhor
definidas, ele vai “ganhando animação, mesmo que os gestos fossem
deselegantes”. O “mesmo que”, aqui, me chega como recurso narrativo, para não
lançar luz demais, não ofuscar o leitor, não tirar seu espaço de cúmplice na
construção, pois o personagem ganha animação não “mesmo que” mas“inclusive e principalmente” por seus gestos
deselegantes.
Alvarenga já tem nome, perfil físico e o narrador,
ainda de forma indireta, pelos olhares dos outros três personagens, vai
estabelecendo também um perfil psicológico. Já não é uma idéia nebulosa, um
velho, um companheiro de Raquel. Trata-se de Alvarenga. Um ser singular, único
feito cada um de nós.
Outro trecho da narrativa, à página 61, coloca o
leitor em contato com a gênese de gestos que vão caracterizar Alvarenga em Maçã Agreste, quando
ainda é coadjuvante, e se aprofundar em Seria uma Sombria Noite Secreta, quando
se transforma em protagonista. Trata-se da cena com o personagem fazendo a
performance de como adestrava o cachorro com quem vivia no quarto de pensão:
“Alvarenga
balançou a cabeça. O pobre [o
cachorro] entendia, mas a princípio não
mostrou habilidades. Queria que o bicho ficasse em pé nas patas traseiras, o
focinho levantado. Começava aí o exercício. Demonstrava, faça assim e assim.
Repetindo os gestos, um bailarino balofo, o velho caminhava nas pontas dos pés
pelo quarto. Assim, faça assim, repetia. O animal não saía do lugar,
espiando-o.”
(...)
Mesmo depois
de rebeldia e persistência o cachorro conseguiu, ainda que canhestramente,
andar nas patas traseiras. No entanto, para que ele ficasse com o focinho
levantado, Alvarenga precisava oferecer-lhe um pedaço de carne, pendurando-a
num cordão e, suspensa, obrigando-o a abocanhá-la.”
(...)
Raquel bateu
com a mão na mesa e foi ao refrigerador, retirou mais duas cervejas, enchendo
todos os copos, fazendo comentários, dizendo:
- Mas você
ainda não mostrou como fez para que o cachorro alcançasse o equilíbrio.
- Não
precisa, basta que eles saibam que consegui.
Jeremias
pediu:
- Mostre,
Alvarenga, mostre.
O velho saiu
da cadeira e, de pé, apanhou uma garrafa vazia na mesa. Gordo, uma figura
extravagante. Ficou nas pontas dos pés, colocou a garrafa no nariz e abriu os
braços. Deu os primeiros passos, a garrafa balançou, ele prosseguiu, andando e
andando, mostrando um certo tipo de arrogância e, surpreendentemente, de
leveza.”
O personagem já tem um nome, mas um nome não é
necessariamente um destino. Enquanto vai sendo criado, pelas próprias ações,
pelo olhar dos outros personagens, Alvarenga vai sofrendo alterações.
Percebe-se que o narrador oculto cuida de inventá-lo, quando Alvarenga aparece
de novo lá pela página 73, junto aos “Soldados
da Pátria por Cristo marchando para o Centro da cidade ao sol da manhã:
“Formavam um
cortejo: à frente Alvarenga, o tenente, com o cachorro num braço, soprando a
corneta de vez em quando, compenetrado.”
A corneta, que aparece aqui pela primeira vez,
apresentada aparentemente de forma casual, depois vai evoluindo também na sua
função como elemento de composição do personagem tendo, já em seguida, à página
74, reforçada a sua importância, o seu poder na caracterização:
“Alvarenga soprou novamente a corneta, e,
desta vez, o silêncio e a expectativa estancaram, por completo, a barulheira.
A partir desse momento, Alvarenga
praticamente sai de cena, os protagonistas do romance continuam a se
desenvolver, a crescer, se relacionar, puxar o fio do enredo.
Apesar de já bem caracterizado até aqui, e de todo
conhecimento prévio que o autor tem dos personagens com que trabalha, que
costuma registrar em imagens, perfis, anotações, Carrero parece não acreditar
em personagens totalmente planejados. Nos diz, em seu Os segredos da ficção,
que “até as obras planejadas, palavra a palavra, podem ser surpreendidas”.
Surpreendidas e surpreendentes, pois lá
pela página 199 Alvarenga reaparece, e nesse momento o narrador organizador,
mais uma vez sob o olhar de Raquel, além de prosseguir no desenvolvimento do
personagem, começa a desvendar para o leitor algo da natureza da relação entre
os dois:
“Ele
riu, e ela o observava através dos cílios, um riso bem próximo da gargalhada,
mostrando as gengivas roxas, porque esquecera de colocar a dentadura. A boca,
ela descobriu, parecia um buraco escuro, e a língua igualmente roxa dava a
impressão de uma cobra que se mexia com rapidez na moita.
(...)
“Sacolejava
o corpo, rindo oco, satisfeito. Ela, apesar da estranha sensação de desmaio,
acompanhou-o no riso, embora apenas os lábios se alterassem. Sentia compaixão
por aquela figura medonha que se esforçava para tirá-la da agonia e imaginava
como era esquisita a impulsão de dormir com um homem daquele. Mas se acostumara
com ele, acostumara-se de tal forma que perdia o sono quando não aparecia, o
que era muito raro. Alvarenga chegava noite alta, sentava-se num banco à frente
da pensão e ficava a madrugada toda vendo-a subir e descer com vagabundos,
mendigos, operários, estivadores, estudantes, nos tempos de boa freguesia,
aguardando a vez. Ia na barraca da calçada oposta, tomava uma bebida e fumava
um cigarro, voltava à guarda.”
Essa relação de dependência de um pelo
outro, essa função de guardião de Raquel que Alvarenga toma a si, agrega
complexidade ao personagem.
Alvarenga já está bem definido, poderia nos parecer
que a partir daí iria apenas cumprir o destino determinado até aqui pelo autor.
Mas para Carrero, durante o processo criador, muitas alterações podem – e devem
– ser feitas. Isso vai ficando claro quando, às páginas 202/203, pelos olhos de
Jeremias e Sofia, o narrador vai mostrando ao leitor que ele ainda não conhece
Alvarenga como pensava que conhecia:
“Escutando
os gritos, embora anunciando num megafone as prendas e ofertas da casa
comercial, Alvarenga parou, com uma placa enorme dependurada no pescoço,
olhou-os, a cara pintada e a roupa de palhaço ainda toda amarrotada, muito
suado, protegeu-se na parede, um chapéu colorido, e desceu, esfregando as
pernas, o sol reverberando nos prédios, nas árvores, nas pessoas, nos carros.”
(...)
Sentados
num banco, Alvarenga ficou entre os dois, satisfeito porque repousava,
impossibilitado, porém, de passar o lenço na testa devido à pintura, e o suor
escorria pelo nariz. Passando, as pessoas não se importavam com o palhaço
conversando com estranhos, grave e sério. Mesmo um palhaço antimágico, antibelo
e antiengraçado, balofo e suarento.
Um palhaço grave e sério, antimágico,
antibelo e antiengraçado, balofo e suarento. Que reafirma, a partir dessa
imagem, de voz própria, a missão que o move:
“-
Não me acanho do trabalho de palhaço – ele disse. – O que não quero é que
Raquel passe privação.”
Por Raquel, Alvarenga se faz palhaço,
cão de guarda, sempre em seu posto, sentado numa cadeira ou num banco na
calçada em frente à pensão em que ela recebe os homens, vigilante.
É com essa imagem de Alvarenga que nos
despedimos dele em Maçã Agreste, comovidos com aquela figura singular, humana,
complexa. Ele não é protagonista em Maçã Agreste. Não aparece mais nas 43
páginas finais do romance. Mas levamos ele conosco no espírito, imaginando o
que mais esse personagem tão rico poderia ter sido, poderia ser.
E é com a alegria de quem reencontra um
amigo que se conheceu pouco mas que se gostaria de ter conhecido melhor que
vinte e dois anos depois, em 2011, na abertura de Seria uma Sombria Noite
Secreta, numa atmosfera de “era uma vez”, que é o tempo da ficção, nos
deparamos outra vez com nosso amigo e, apesar de tantos anos passados, porque
nos foi tão bem apresentado em Maçã Agreste, de pronto o reconhecemos:
“Na
noite de um dia sempre quente e quase interminável, Alvarenga estava ali ao pé
da escada: na ponta dos pés, a boca aberta, foca gorda e amestrada, a corneta
na mão, esperando o peixinho dourado de chocolate.”
Nosso amigo cresceu e apareceu. Já não
é mais apenas um pressentimento, um rosto nas sombras, um coadjuvante. Já tem
um nome. O escritor também sentiu, feito a gente, leitor, que o personagem
prometia muito mais, merecia mais espaço, e o promoveu a protagonista, para que
seu aprofundamento enquanto personagem fosse viabilizado.
Alvarenga continua ali, ao pé da
escada, gordo, na ponta dos pés, a corneta na mão, durante esses anos todos
guardião de Raquel. Agora, tão amestrado quanto seu cão em Maçã Agreste. Mas o
autor recorre à imaginação e o cão amestrado vira foca, o focinho levantado se
muda em boca aberta, o pedaço de carne usado como incentivo se transforma no
peixinho dourado de chocolate.
Carrero volta a nos advertir, em Os
Segredos da Ficção, que “até que um personagem tome forma, precisamos escrever
milhares de palavras, centenas de páginas”. E é com esse fôlego que o escritor
se joga na empreitada, a trajetória de Alvarenga vai se estruturando
lentamente, não mais apenas um nome, mas um ser. O personagem vai evoluindo,
com a ajuda da memória e da observação, trabalho, muito trabalho, alguém que se
destaca com traços visíveis, claros e que, por fim, ganha autonomia
psicológica.
Fica o convite aos que se sentiram provocados
a conhecer melhor Alvarenga, a se debruçarem nas páginas de Maçã Agreste, onde
ele nasce e dá os primeiros passos, e de Seria uma Sombria Noite Secreta, onde
vão encontrar um Alvarenga ainda mais rico e complexo, na história do camelô e
da prostituta Rachel, que vivem um amor desencontrado e confuso.
Em Seria uma Sombria Noite Secreta, Alvarenga repete e
aprofunda “sempre a maravilha de estar prazeroso e inocente no sangue”,
esboçada em Maçã Agreste. Vive para proteger Rachel. Apesar de protagonista,
vive sem palavras. Rachel é quem fala por ele, que é capaz de, mesmo ao vê-la
belamente nua, sofrer a maior decepção por ela não lhe oferecer um peixinho de
chocolate em agradecimento a cada amante que vai à pensão após o seu toque de
corneta.
São romances marcantes, fortes, cheios de uma poesia
que, principalmente em Seria uma Sombria Noite Secreta, Alvarenga e Rachel nos
deixam entrever nos desdobramentos de suas histórias, nas sutilezas dos
recursos narrativos através dos quais Raimundo Carrero nos dá acesso ao mundo
interior e caótico que forma a mente desses dois seres atormentados.
Atormentados e sofridos mas profundamente humanos.
Texto publicado em Coleção Debate I - Raimundo Carrero - Academia Pernambucana de Letras - Organização Fátima Quintas - Edições Bagaço
"Data de 4 de setembro de 1974 a primeira correspondência enviada por Raimundo Carrero ao escritor Odylo Costa Filho, imortal da Academia Brasileira de Letras. O iniciante autor pernambucano escreve:
'Estou mais uma vez lhe incomodando. Mas é que sou um homem um tanto nervoso e não sei ficar quieto por muito tempo. Sofro de ansiedades. Por isso não controlei o impulso de lhe escrever novamente. Como faz pouco mais de um mês que lhe entreguei os originais de minha novela: A história de Bernarda Soledade - a tigre do sertão para uma possível edição na Artenova e, como ainda não recebi resposta, gostaria de saber como é que andam as coisas.' "
"Respirando literatura e ajudando a revelar novos valores no suplemento Pernambuco, do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Raimundo Carrero cumpre sua sina de Sísifo pernambucano diariamente. Voltando sempre ao rés do chão da folha em branco para a escritura de um novo livro. Ao chegar eo cume e antes mesmo de colocar a obra nas mãos do leitor e sentir-se num Olimpo, momentâneo que seja, Carrero se vê impelido a começar novamente a sua tarefa sem fim de criação"
Em Coleção Debate volume I da Academia Pernambucana de Letras - Raimundo Carrero - organizado por Fátima Quintas - Edições Bagaço
Raimundo Carrero: a matéria, o modo, o mundo Lourival Holanda
"Raimundo Carrero, desde há muito, vinha apontando como promessa; agora chega a um momento meridiano de sua produção. As premiações nacionais só reforçaram a aposta de quantos, daqui, acompanham seu percurso. As superstições classificatórias desnorteiam, mais que guiam, no caso Carrero."
"O universo de Raimundo Carrero é denso, dramático - pela própria matéria que escolhe. Lucilo Varejão Filho percebeu isso desde cedo: De Carrero escritor, eu diria que é dos mais densos que temos lido. E outra coisa não poderíamos esperar de um leitor constante de Dostoievski, que ele não se cansa de revisitar."
"Nos romances mais fortes, Carrero sugere: experiência erótica e a mística - intensidades extremas que se tocam. Daqueles aos quais só o infinito sacia. A paixão desvia nossos olhos da imortalidade."
Texto completo em Coleção Debate, volume I - Raimundo Carrero, da Academia Pernambucana de Letras, Organização Fátima Quintas, Edições Bagaço
É a terceira noite que ele
não consegue dormir. Empacado. Fica olhando com inveja a liberdade, o
perambular irresponsável, a frivolidade com que ela leva os dias. Faz o
que quer. Ou não faz nada. Enche o saco. E ele ainda atura. Ela é que é
feliz.
Feliz, eu? Sabe você o que é ser parido
no lixão – no esterco?, precisar descolar o rango em restos e perebas?,
ter que trepar nas horas mais quentes do dia e olhos arregalados
eternidade adentro ser obrigada a contemplar tantas mazelas? Nem mesmo
pisco – não sonho, não me iludo. Sabe o que é ter por sina disseminar a
bubônica, febre, lepra, diarréia, tifo, disenteria?, e ainda ter que
ouvir que sou a chata – abusada – que perturbo o seu sono zumbindo e
voando feito doida? É demais.
Apesar de limitada a um mesmo espaço,
parece estar sempre criando novos circuitos de travessia. Quando pousa,
um leve aceno e logo recomeça a dança. Quem sabe me ensina o segredo dos
criativos voejos. A fórmula da fertilidade. Quem sabe é a inspiração de
que preciso pra poder desempacar.
Bem sei que o que te inspiro é desprezo e
a mim só devotas impaciência. Acho incrível que haja no mundo babacas
feito você – podendo dormir à larga e comandar o viver – a varar a
madrugada, brechando uma pobre mosca, ora tenha paciência.
Paciência bem que eu tenho. Mas como a
de todo mundo a minha também acaba. Apanho o mata-moscas e começo a
duelar com a pequena encrenqueira. Mas como a danada é ágil. E como me
desafia. Já golpeei cada móvel. O ar meia dúzia de vezes. Umas três o
próprio corpo.
Quando ele senta, cansado, já desistindo
da luta, pousa bem na sua frente, sobre a folha de papel. Demora-se
alguns segundos, e então, dando uma rabiçaca, alça voo porta afora. Não
sem antes defecar, no texto em que ele escrevia, bem claro e definitivo,
um nítido ponto final.
Só por um instante
Gerusa Leal
Bum. Bum. Bum. Bum. O socador golpeia o chão
compactando o solo bum bum bum bum. A poeira cinzenta cobre as botas
cinzentas sem cadarços sem meias as pernas magras mergulham nas calças
desbotadas, os joelhos dobram, esticam e bum bum bum bum as mãos
ressecadas pelo cimento, calejadas pela madeira das hastes do socador
que bum bum bum bum a camisa bem gasta aberta no peito que se contrai e
distende enquanto o socador bum bum bum bum a cabeça que levanta
deixando ver o rosto e bum. O socador pousa na terra, a mão segura a
ponta da camisa, passa no rosto enxugando o suor.
E ela vê então o pedreiro, mas só por um instante, um ínfimo instante.
Aperta o passo atravessa a rua as pessoas indo e vindo, as
fachadas das lojas, as placas, os pontos de referência, está com pressa,
não sabe direito o caminho. Perde-se.
Perde a hora. Perde a urgência, se senta na tora de madeira embaixo da árvore.
E bum... bum... bum... bum... Deixa a moça ela tá descansando e
bum... bum... bum... Menino, para de mexer aí e bum... bum... bum... e o
ônibus parou e abriu a porta e alguém subiu dando bom dia ao cobrador.
Será que tá passando mal? e bum... bum... tá tá tá tá tá tá tá o martelo
na madeira desmontando o tapume.
O cheiro da rua é forte, mistura de esgoto com fruta, verdura,
carne, suor, óleo diesel, flores, suspira e bum sumiu tudo, tudo parou, o
silêncio zumbindo ao redor.
Foi tanto tempo, foi quase nada, e Bum. Bum. Bum. Bum.
Está atrasada, abre os olhos, levanta, atravessa a rua, caminha
alguns passos, reconhece a fachada da loja, sobe as escadas, apanha o
relógio que deixou no conserto.
Coloca no pulso, desce os degraus lentamente, agora tem tempo. Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Tac. Tic. Tic. Tic. Tic.
Merda. Parou outra vez.