quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Poema Ex-finge, na voz de Meimei Corrêa

Programa Domingo Romântico

Poema Ex-finge, na voz de Meimei Corrêa - Programa Domingo Romântico - Luiz Alberto Machado e Meimei Corrêa



Ex-finge
Gerusa Leal


percorre as veredas do meu corpo                       
verás que ainda há parte do humano
que fui quando assim fingia ser

tateia com vagar todos os flancos
desse ser tão incomum igual a ti

de quatro talvez me descortines
de quatro animais encontras partes
à minha humanidade amalgamada

cabeça e seios de mulher
corpo de touro (ou de cão se assim preferes)
garras de leão asas de ave
e essa imensa cauda de dragão

não temas, amado, inda sou eu
a mesma que desconhecendo, amastes
e se duvidas de mim, olha no espelho
verás que, enfim, me decifrastes


Blecaute - Uma Revista de Literatura e Artes

BLECAUTE Nº 13

http://revistablecaute.com.br/

 A edição está ótima, vale conferir da primeira à última página. 

Meu conto na edição:

Na ponta dos dedos
Gerusa Leal



Cabeça erguida, nariz empinado, não tem satisfações a dar aos cachaceiros no bar da esquina. Nem às vizinhas espiando pelas brechas das janelas que escuta fechar quando deseja boa noite dizendo-lhes o nome.
Atravessou o pontilhão sobre o riacho quase seco que corta a mata rala por trás do barraco. De taipa, dois aposentos; parecia que desabava se batessem a porta com mais força. Escuro. Levantou o capacho, a chave estava lá. Entrou tateando as paredes. Achou o candeeiro, ainda um pouco de querosene; o fósforo no lugar de sempre.
Precisava de um banho. O banheiro, nos fundos do barraco, um cubículo improvisado com tábuas catadas em restos de construção. O chuveiro, um latão de tinta que encheu com água tirada do poço com o balde. Puxando um barbante, virava despejando em outra lata cheia de furos no fundo abertos com prego e martelo, improviso do irmão enquanto ainda morava lá. Sentiu a água fria escorrendo sobre as roupas suadas e fedidas como se fosse um bálsamo.
Foi tirando peça por peça com a ponta dos dedos. Pegou o pedaço de sabão amarelo numa das brechas das tábuas, esfregou, agachou-se, enxaguou na água da bacia. Torceu, pendurou tudo na corda.
A noite era de lua. O barraco era o último da rua antes do rio, ficava isolado por um terreno baldio cheio de bananeiras. Os galhos secos dos arbustos perto do riacho não se moviam, a estiagem deixava o tempo abafado.
Puxou o barbante deixando a água escorrer sobre o corpo nu. Esfregava com força até a pele arder. Voltou para dentro do barraco se enxugando com a toalha. Largou o corpo no cobertor puído sobre o sofá de onde pulava uma mola. O silêncio só não era maior porque depois que se aquietara o grilo voltou a cantar.
Quando partiu, não pensou que um dia voltasse. Muito menos assim. Nem que sentisse falta do que deixou para trás.
Estremeceu lembrando o suíço que lhe confiscou o passaporte e deixou trancada junto com as outras, quase sem comida. Ele sorria enquanto lhe sussurrava ao ouvido sei que gosta disso mas precisa aprender a fazer bem feito eu estou aqui para ensinar.
A proposta de trabalho era irrecusável. Arabela teria por volta de quinze, dezesseis anos, se tanto. O registro de nascimento dizia que eram dezoito. Ia acontecer no exterior, ser dançarina, quem sabe com um pouco de sorte até modelo. Desde criança treinava caras e bocas na frente do espelho manchado e opaco na porta do guarda-roupa da mãe. Que havia falecido enquanto ela estava fora. Tinha dado a maior força para que aceitasse. Afinal que futuro ela ia ter ali, naquele fim de mundo, no meio de ignorantes que não percebiam o talento da moça. Por despeito ou cobiça a comiam com os olhos.
Foi a amiga que a indicou. Não comentou detalhes. Pediu uma foto, que seguiu pelo correio. O suíço chegou no carrão, quando estacionou na porta o lugar inteiro já sabia, o motorista tinha parado para perguntar onde ela morava. Cercou-a de promessas, e ela foi.
Era obrigada a prestar serviços por dezesseis a dezoito horas por dia. Acabou, como as outras, nas drogas.
De repente uma paz, um alívio ali sozinha. Um instante de culpa por não estar sentindo a falta da mãe.
Entrou no quarto, abriu a porta do guarda-roupa presa apenas por uma dobradiça, aprumou e se olhou no espelho. Bonita.
Não, ela tinha entendido mal, não era bem isso, se estava ali era porque imaginava que Arabela tivesse muita experiência e que poderia lhe ensinar a fazer coisas que tirassem o marido do caso que estava tendo com uma colega do escritório, mas havia pensado só numa conversa.
E o outro que depois de fazer de tudo com ela veio contar que acabou o noivado de seis meses porque a noiva tinha pedido para que ele a chamasse de putinha, lhe desse uns tapas, pegasse forte, crente que ele ia se amarrar. Mas ele ficou chocado com a iniciativa e gritou que não admitia que a mãe dos filhos dele parecesse uma puta. Cafajestes.
Uma puta. Respirou fundo, cansada. Queria ser prostituta. Puta, não. Esse não é um desejo que se admita nem para si mesma, mas já não tinha porque esconder dela própria. Queria ser prostituta. Livre. Ser dançarina, modelo. Ganhar o próprio sustento e não precisar vender o corpo feito as putas. Só queria se entregar sem regras, sem condições, simplesmente se oferecer.
Acariciou os seios, deslizou as mãos sobre o ventre, alisou as coxas. Passou a ponta dos dedos de leve sobre os pelos entre as pernas.
Só queria ser dona do próprio nariz. Que vantagem havia em ser prostituta se para isso acabava virando escrava? Puta.
No início não havia maldade, só prazer. Do olhar, do sorriso, do toque. A mãe era quem a despertava para a malícia, quando lhe mandava para dentro de casa se jogava bola de gude agachada com mais três ou quatro meninos, quando lhe dizia para sentar direito, puxar a saia, não sorrir tanto.
Também não era bem assim essa história de que puta não goza. Ela às vezes gozava, às vezes não. Mas o grande prazer era o de não ser mulher de um homem só.
E eles queriam que ela falasse disso quando a interrogaram depois que a polícia desmantelou o cativeiro. Eles jamais entenderiam.
Vestiu a calcinha e a camiseta. Estava com fome. Achou uma bermuda, calçou a sandália e retornou ao centro. No bar, pediu um café com leite, pão com manteiga. O cara na última mesa levantou e se aproximou do balcão. Ela sorriu. Subiram para um dos cômodos.
Quando desceu, pediu uma cachaça. Bebeu de uma vez, sem olhar ao redor retomou o caminho de casa.
Àquela hora as ruas estavam vazias. Aprumava o corpo. Mantinha a pose.
Às vezes acordava sem saber onde estava. Adormecia e as imagens se misturavam ela dançando no palco desfilando na daspu jogando bola de gude o sorriso cínico do suíço o prazer a dor os homens se sucedendo na cama a mãe morta o delegado o banho no quintal o cheiro na ponta dos dedos o cara no bar a caminhada solitária pelas ruas desertas aquilo não era hora de moça direita andar fora de casa.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

RelevO - Edição de dezembro de 2012

http://issuu.com/jornalrelevo/docs/relevo_-_edi__o_de_dezembro_de_2012

Vale demais conferir.

A edição traz um poema nosso:



Pôr-de-sal


sentado sobre a pedra
o homem escuta o mar
não o olha mais de frente
já não lhe teme a força
pois mesmo forte o rugido
pelas mãos de Deus contido
não ousa seus pés molhar

o homem escuta o mar
que já fez olhar tão longe
até onde o céu baixando
esconde o que vem de lá

não o olha mais de frente
agora tão diferente
de quando a alma nos olhos
imaginando tesouros
gostava de mergulhar

já não lhe teme a força
pois sabe que em seu peito
a inundar-lhe de anseios
tão feroz quanto o primeiro
transborda um outro mar

e mesmo forte o rugido
a urgência com que clama
aprendeu com as marés
a ir e depois voltar

não ousa seus pés molhar
pois receia que o desejo
de entregar-se ao infinito
suba ao seu corpo inteiro
e o leve de volta ao lar

pela mão de Deus contido
senta o homem sobre a pedra
e apurando os ouvidos
escuta as vozes do mar


Gerusa Leal
 


sábado, 1 de dezembro de 2012

A importância do sertão na obra de Raimundo Carrero

Texto da fala de Gerusa Leal na mesa em homenagem a Raimundo Carrero, em Arcoverde, na quarta edição da Jornada Literária Portal do Sertão, promovida pelo SESC Pernambuco


A importância do sertão na obra de Raimundo Carrero
Gerusa Leal
        


"Como escritor, não posso seguir a receita de Hollywood, segundo a qual é preciso sempre orientar-se pelo limite mais baixo do entendimento. Portanto, torno a repetir: não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão (...). No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu; por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua".
Guimarães Rosa

Entrevista conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em janeiro de 1965 e publicada em seu livro: Diálogo com a América Latina. São Paulo: E.P.U. 1973



         A partir dessa fala de Guimarães Rosa, acho que posso, sem receio, afirmar que no sertão, do ponto de vista metafísico, psicológico, fala-se a língua de Raimundo Carrero. E Raimundo Carrero fala a língua do sertão. Mesmo se sertanejo não fosse. Pois a obra de Carrero, também, além de não seguir a receita de Hollywood, se escreve no terreno da eternidade, da solidão. Nos romances de Carrero, os personagens também são o eu que ainda não encontrou um tu. Na estética de Carrero, também os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua.
         Mesmo, dizia eu, que sertanejo não fosse. E sendo, ainda mais força tem o sertão, de todos os pontos de vista, na obra de Carrero. Ainda quando a paisagem e o tema não são sertanejos, os personagens, em sua psicologia, embora urbanos, trazem dentro de si alguma espécie de sertão. E não podia ser diferente já que sertanejas são as raízes do escritor.
         No romance de estreia de Carrero, e na protagonista escolhida, Bernarda Soledade, a tigre do sertão, a partir do título o sertão se encontra presente. Mas o que chama a atenção, já nesse livro, é a força, a densidade, a vastidão dos sertões interiores. É a psicologia da protagonista, uma mulher seca na exteriorização dos seus atos, como secas parecem as fortes mulheres do sertão, seca nos gestos, nas palavras, como era da cultura sertaneja no tempo em que o romance é ambientado, como seco parece o sertão quando não chove:

“- Naquelas matas, vamos caçar muitos cavalos. Em Puchinãnã, falta um homem de músculos fortes. Poderia sair do meu ventre. Entretanto, não passo de uma mulher seca. Nenhum homem quis pousar sobre o meu corpo alvo. E os cavalos serão a presença do macho.”

Carrero, mesmo sendo sertanejo, costuma dizer que não conhece seca, pois em Salgueiro chove muito. Além disso, fica difícil falar na importância do sertão, região geográfica ou socioeconômica, pois teríamos que definir se falávamos do sertão mítico, que persiste no imaginário principalmente de quem não é da região, ou do sertão contemporâneo, que apesar de preservar cultura própria, já assimilou tanto da cultura dos grandes centros urbanos. Os dois convivem, como já disse Antônio Torres, sem se negar.
Os personagens de Carrero não têm nada dos personagens tipo da literatura regionalista. Então, não dá pra falar da importância do sertão na obra de Raimundo Carrero sem reinventar o significado da palavra.
Ariano Suassuna teria dito que o sertanejo é um povo de sobrevivência. Euclides da Cunha, que é antes de tudo um forte. Os personagens de Carrero todos lidam com a questão da sobrevivência e todos são, a seu modo, fortes, mesmo quando precisam tirar essa força de uma incomensurável fragilidade. Assim como todo ser humano. É desse substrato sertanejo que nascem também as personagens de Sombra Severa, vivendo paixões primitivas, com uma secura temperada de afetos que nunca se dizem de todo.
Se há um sertão de Guimarães Rosa, um sertão de Euclides da Cunha, um sertão de Ariano Suassuna, em As sementes do Sol – O semeador, o leitor é apresentado ao sertão de Raimundo Carrero, um sertão que, segundo o próprio escritor, foi criado como a região geográfica Arcassanta, que pode ser uma fazenda, um povoado, uma cidade, ou apenas um simples lugar deslocado do mapa, à beira da estrada, de um rio, de um açude. Érico Veríssimo inventou Antares. Outros autores preferem nomear os lugares pelo nome que receberam na tradição. Carrero diz preferir ter mais liberdade. Sua região, seu sertão começou com Santo Antônio do Salgueiro, ou simplesmente Salgueiro, e evoluiu para Arcassanta, porque, afirma o escritor, não sou retratista, sou intérprete. Esse sertão, que Raimundo Carrero carrega para onde for, aparece em algumas passagens de As sementes do Sol:

“Terminada a reza, pesou sobre a sala um silêncio morto. O silêncio da noite de Arcassanta. Um silêncio morto e suave. Um silêncio que beirava a agonia. E sem qualquer ruído, enquanto as empregadas solícitas e caladas providenciavam as outras comidas, os homens levantaram as cadeiras para se sentar.” (...)
 “Avistaram a casa-grande de Arcassanta. A casa – avarandada, alta, pintada de branco, portas e janelas azuis – apareceu no meio da neblina.” (...)
“Parecia que retornava a Arcassanta, os chinelos empoeirados, para conviver com fantasmas, almas penadas. Para escutar o bater de portas e janelas abandonadas, sacudidas pelo vento.” (...)
“Eram seis horas. Sabia porque de Arcassanta podia escutar as batidas do sino da capela de Santo Antonio do Salgueiro. Batidas monótonas, tristes, compassadas. Mais monótonas e mais tristes quando ouvidas à distância. Na lonjura das idéias.” (...)
“O cavalo fazia voltas, voltas, mas estava mesmo era retornando para Arcassanta. Involuntariamente. Sem que ele, o cavalo, nem ele, Absalão, tivessem forças para evitar.”

Carrero não evita. Em O amor não tem bons sentimentos, romance cujo cenário e temática são bem mais urbanos, retorna a Arcassanta:

“Agora me lembro do corpo de Biba nas águas barrentas do rio em Arcassanta, e tenho certeza de que na verdade estava de cócoras, por causa do hábito. Apenas de calça, sem camisa, repousava os braços nos joelhos, os pés na lama. Não foi assim desde o começo, confesso que não foi assim. Disse aos policiais tantas vezes, apesar das pancadas.”

 Arcassanta, o sertão de Raimundo Carrero, aparece em outros romances, mesmo sem esse nome, de outras maneiras. Em Sombra Severa, por uma narrativa de forma seca, com frases curtas e incisivas, economia verbal que caracteriza o lacônico Judas. O sertão como região está presente no romance, mas mais como paisagem para um enredo que se passa muito mais dentro do que fora dos personagens. É do sertão de dentro que vêm também as impressões, os pensamentos, as solidões de Judas:

“Judas pensou em tudo isso depois que trouxe o tamborete, sentou-se encostado na parede da casa, o alpendre recendendo a matos verdes, e acendeu o cigarro, cuja fumaça – antecipada pelo vaga-lume do fósforo – ensombreou o rosto ossudo e taciturno já escurecido pelas abas do chapéu, ombros arriados, um olhar sofrido – o touro que o habitava -, gestos monótonos de quem sabe que a noite não recua.”

Carrero já disse, em outro momento, que foi no Sertão, vendo os homens nas feiras, vendo os vaqueiros, que sua vida começou a ter sentido. Não só os homens fortes e trabalhadores, os vaqueiros, mas também os bêbados, os loucos, os fracassados. Não só os homens, mas também as mulheres. Não só as mulheres secas e de uma virtude severa, austera, mas também as prostitutas.
Foi nesses homens e mulheres observados desde a infância, primeiro no sertão, que também a vida de seus personagens ganhou sentido. Já em As sementes do Sol – O Semeador, Carrero reflete sobre questões que ganham características únicas sob o Sol de um sertão que transmite a seus personagens a cultura e os valores de uma região, embora sejam questões universais, como por exemplo as da religião, da morte:

 “As vizinhas rezavam em torno do caixão. Davino e os filhos sentaram-se na mesa para o almoço. Apesar da morte da esposa, não permitiu que alterassem os hábitos da casa. Mesmo quando recebia os pêsames, ordenou que as empregadas preparassem um cozido gordo. Não admitiu sequer que Mariana, tão frágil quanto um vulto, permanecesse ao lado do caixão. Desejava todos na mesa, todos. (...)
Davino fez o Nome-do-Pai. Todos o acompanharam. Segurando uma velha Bíblia de capa negra, rezou o salmo. Terminada a oração, os talheres tiniam. Mariana, mais ausência do que vida, colocou umas poucas colheradas no prato. As lágrimas escorriam pela face. Lutava para servir-se. Escutavam-se, vindos da sala de visitas, os cânticos fúnebres.
Lourenço tocou com o cotovelo em Absalão:
- Ainda não foi visitar o rio onde sua mãe suicidou-se?
Davino levantou a voz.
- Não quero que fale deste assunto agora. Aliás, você conhece suficientemente os costumes desta casa, Lourenço. Sabe que não é permitido falar na mesa. É no silêncio da mesa que se agradece a Deus pela abastança.”

Questões como a embriaguês habitual do personagem são também tratadas, em As sementes do Sol, à luz dos costumes, valores e cultura sertaneja:

“A mesa, Absalão sabia, não era ali como um templo. Era uma arena. Uma luta. Lourenço sempre falava, embriagado ou não. Embora fosse raro não estar embriagado. Ester o repreendia, poupando o nervosismo e o refinamento do marido. Muitas vezes reuniu os filhos antes das refeições para pedir que não rissem com as brincadeiras do tio.”

O cenário da figura do patriarca à cabeceira da mesa, do respeito que lhe devia toda a família, dos cuidados da mulher para que esse respeito não fosse afrontado pela ingenuidade das crianças ou pelo destempero do parente embriagado, ganha contornos típicos pela influência da formação sertaneja do escritor, o que fica bem evidente nas cenas e diálogos lidos. Típicos nesse aspecto, pois as questões, é preciso reafirmar, são universais. Como bem lembra Tolstoi na abertura de Anna Karenina, no sertão pernambucano ou na Rússia, as famílias infelizes são infelizes cada uma a sua maneira. E é dessa infelicidade, dessas agruras, dessas angústias, desse eu que ainda não encontrou um tu, seja no sertão, seja nos espaços urbanos, que a obra de Carrero fala, através da vida de seus personagens.
Pincei algumas poucas obras, alguns poucos personagens que, a meu ver, exteriorizam mais a importância do sertão na obra de Carrero. Mas em todos os seus personagens o leitor vai encontrar, de alguma forma, essa força, esses valores, essa cultura sertaneja, mesmo que os personagens, repito, sejam urbanos. Foi a forma que encontrei para não fugir ao tema proposto pela mesa, para não seguir por um viés reducionista, por uma análise sociológico-geográfica.
A obra de Carrero é vasta, seus personagens são complexos, a raiz sertaneja é um dos múltiplos aspectos que nutrem suas narrativas – sua Arcassanta, que ele carrega para onde for. Importante, sim, mas mesmo quando explicitado, na obra de Raimundo Carrero o sertão aparece como elemento de composição, cenário para a reflexão sobre temas e questões humanas de ocorrência e importância universal. Ou, como diria Autran Dourado, perda recente para a literatura brasileira, grande escritor e teórico da prosa de ficção:

“Os críticos-sociólogos recebem os personagens como gente, ainda estão na mimesis, quando os criadores muito pouco se preocupam com isso, a não ser secundariamente, para passar a sua moeda falsa e iludir – da mesma maneira que com a metáfora – o leitor: o bom do personagem é ter um corpo...”

Os personagens de Carrero têm corpo mas, acima de tudo, têm alma. E é muito mais nessa alma que circula, metaforicamente, o sangue sertanejo do autor.